
O açaí é um dos principais elementos da cultura e das tradições alimentares da população paraense, um hábito que tem longa história. Mas, desde 2010, o fruto da palmeira Euterpe Oleracea, conhecida popularmente como açaízeiro, também virou um alimento de moda sendo consumido nacional e internacionalmente. Desde então, a demanda pelo produto tem aumentado e isso tem gerado impactos e prejuízos socioambientais às populações locais, como apontam os pesquisadores do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia “Perturbações antrópicas, novas trajetórias florestais e sustentabilidade na Amazônia” – INCT NEXUS.
O aumento da demanda pelo açaí registrado nos últimos anos, levou a busca pela ampliação da produção do fruto para abastecer os mercados local, nacional e internacional. No entanto, o avanço dos açaizais, batizado pelos pesquisadores do INCT NEXUS de “açaização”, tem representado um novo desafio socioeconômico e ambiental para populações, pesquisadores e governos da Amazônia, é o que explica o biólogo e pesquisador de pós-doutorado do Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG) e membro do NEXUS, Madson Freitas. Segundo o pesquisador, como o açaí é um dos principais ativos da floresta, gerador de emprego e renda na região, sua cadeia produtiva envolve uma série de agentes que dependem do fruto, desde a economia familiar até grandes corporações. “Localmente envolve produtor-atravessador, batedeiras-consumidor; externamente envolve produtor-atravessador-empresas de beneficiamento-sorveterias (açaiterias) nacionais e internacionais-consumidor”, explica o biólogo.
Além dos pesquisadores do NEXUS, cientistas sociais que investigam a história da alimentação e do abastecimento na Amazônia, também identificam mudanças significativas na cadeia produtiva do açaí. O professor e antropólogo Miguel Picanço, por exemplo, afirma que a cadeia produtiva do açaí “outrora regia-se por princípios sustentáveis, respeitando o tempo e os ciclos da natureza, uma vez que estamos falando de uma cadeia produzida pela própria natureza, afinal o plantio dos açaizeiros se dava por processos naturais, operacionalizados seja pela ação dos ventos, dos animais ou ainda pela ação das águas das chuvas e dos rios, os quais, generosamente se encarregavam pela dispersão e reprodução dos frutos”.
No entanto, ele alerta que este sistema produtivo hoje tem se aproximado mais das lógicas do agronegócio para atender a uma nova demanda pelo fruto. Se o açaí era comida para a classe trabalhadora, a “moda gourmet” presente no Brasil e no mundo, formatou novas práticas alimentares de consumo do produto. “Portugal, por exemplo, por lá, é como sorvete que o açaí se apresenta, caindo no gosto, principalmente dos jovens portugueses. São inúmeras lojas (uma delas exporta mais de 70 toneladas de açaí por ano) espalhadas pelo país, com considerável concentração nas cidades de Lisboa e Porto. O caso de Portugal nos ajuda a compreender os processos ocorridos com o açaí, desde a cadeia produtiva, suas implicações econômicas e ambientais até as ressignificações no gosto e nos sentidos atribuídos ao consumo”, completa o pesquisador.
Além da demanda, o alto valor agregado aos subprodutos do açaí e ao próprio fruto tem estimulado grandes empreendimentos no setor, expandindo as plantações em solos de terra firme, seja em áreas de reflorestamento, ou avançando sobre a floresta com o intuito de elevar ainda mais a produção que, de acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) alcançou a marca de 1,6 milhão de toneladas em 2023, uma receita superior a 8 milhões de reais naquele ano, sendo o estado do Pará o maior produtor de açaí do mundo, representando mais de 90% da produção nacional, destacando-se os municípios de Igarapé Miri, Cametá e Abaetetuba, segundo dados da Fundação Amazônia de Amparo a Estudos e Pesquisas (Fapespa). Ainda de acordo com a Fundação, parte da produção recebeu incremento financeiro, a partir do sistema de Crédito Rural, na casa dos 77 milhões de reais em 2022.
Mesmo com um aumento significativo da produção, os efeitos da alta demanda somada à carência do açaí no período de entressafra do produto, desestabilizam toda a cadeia produtiva da região. Nas últimas semanas, batedores de açaí (responsáveis pelo beneficiamento do fruto) da região metropolitana de Belém chegaram a declarar estado de greve como uma forma de protestar contra os altos preços praticados no mercado, principalmente nessa época do ano. “O Pará se tornou o maior produtor de açaí do mundo. Mas a gente não consegue ver esse açaí, por que?”, questiona Rochinha Junior, uma das lideranças do movimento grevista.
Para o batedor de açaí e diretor de comunicação da Associação dos Vendedores Artesanais de Açaí de Belém (Avabel) a carência do fruto nas feiras locais está associada à alta demanda pelo produto que segue direto para a exportação. Para ele, há uma concorrência injusta entre os trabalhadores de pequeno porte e as fábricas e grandes corporações que tem crescido na região influenciando diretamente a alta dos preços. “De três anos pra cá o fruto encareceu muito. Eu comprava uma lata de açaí a R$25,00. Hoje ela, na safra, está custando R$79,00. E esse ano não existe safra, porque foi um ano que as fábricas chegaram na feira e começaram a levar todo o fruto da tarde até a madrugada e o batedor artesanal ficava com o que sobrava”, alertou Rochinha.
Os pesquisadores do NEXUS também têm monitorado de perto as mudanças e os impactos da produção do açaí na Amazônia paraense. Para Madson Freitas, biólogo do INCT, as dificuldades de produção e abastecimento de açaí causam diversos prejuízos aos envolvidos neste processo, desde a perda de renda até insegurança alimentar, sobretudo durante a entressafra. O pesquisador alerta que há uma redução de 45% na renda das famílias neste período.
O antropólogo Miguel Picanço reforça também que quem sente mais sensivelmente esses efeitos são as classes trabalhadoras. De acordo com Picanço, “para se proteger da ameaça do preço e da possível falta do açaí, os paraenses elaboraram uma estratégia, tratando-se da chula, ou churela, que nada mais é do que a água da lavagem dos caroços do açaí. Então, comumente, ao comprar o açaí, discretamente se pede um pouco de churela, a qual, sendo adicionada ao açaí, o faz render”.
E as estimativas não são nada positivas. Madson afirma que a crise climática pode impactar ainda mais o açaí, diminuindo o período de safra do produto. “Eles (os povos tradicionais, pequenos produtores e populações ribeirinhas) já tinham uma percepção de uma mudança principalmente nos anos que são muito secos. E isso aponta para uma vulnerabilidade econômica. E agora no período da entressafra, há uma perda líquida na renda, então, as famílias que não tem nenhum tipo de benefício social são os mais prejudicados, os mais afetados pela insegurança alimentar, porque eles acabam tendo dificuldade de comprar os alimentos básicos, porque não tem o açaí”, base da renda familiar de inúmeras famílias, explica o pesquisador que atualmente desenvolve análises no campo da sociobioeconomia a partir de entrevistas com moradores de comunidades da floresta de várzea nas adjacências de Belém.
Como alternativa econômica, esses grupos buscam na coleta de outros produtos da floresta uma forma de tentar garantir renda e a manutenção de sua subsistência nos longos períodos de escassez do açaí na região, que segue até março, podendo se prolongar até o mês de junho. Mas, com o aumento da demanda pelo fruto da palmeira amazônica, as áreas de plantio têm sido expandidas e a monocultura do açaí pode ainda influenciar nessa “segunda opção”.
Por isso, além dos impactos socioeconômicos, os pesquisadores do NEXUS, tem analisado como a exploração agroflorestal não prejudica apenas os agentes humanos, mas a biodiversidade do entorno dos açaízais. “400 touceiras (de açaí) geram uma perda de 75% das espécies vegetais, simplifica as assembleias de plantas e reduz a polinização, um importante serviço ecossistêmico para a humanidade que consome o açaí e para a biodiversidade em geral”, explica Madson Freitas.
“Esse é um desafio porque a gente não tem ainda uma fórmula pra dar conta dessa produção de forma a não prejudicar o meio ambiente. Mas as soluções envolvem o fortalecimento de estratégias que melhorem o preço e certifique um açaí de qualidade de maneira sustentável, sem perder a característica de produto da sociobiodiversidade e manutenção econômica das famílias ribeirinhas”, completa o pesquisador do INCT que tem discutido e buscado apresentar soluções bioculturais para as perturbações antrópicas das florestas amazônicas.